PGBR NA MÍDIA
Os Apps e as novas relações de trabalho
MPT reconheceu, em dezembro, o vínculo empregatício de motociclistas cadastrados em aplicativo
Por Yasmim Girardi
Uber, Loggi, iFood e Rappi são exemplos de nomes bastante conhecidos na era de serviços por aplicativo (apps). Empresas como essas são responsáveis por realizar entregas, dar caronas e, até mesmo, comprar alguns itens no supermercado. Trabalhar cadastrado a uma empresa de aplicativo garante que os motoristas e os motociclistas possam escolher os horários referentes à jornada de trabalho ou decidir a quais demandas atender. Esse tipo de trabalho impede, porém, que os cadastrados tenham algumas garantias como férias remuneradas ou 13º salário, por exemplo.
Porém, no início de dezembro, o Ministério Público do Trabalho (MPT) repensou esses aspectos e determinou que a Loggi – empresa de tecnologia, que através da plataforma conecta os clientes que precisam de uma entrega a um mensageiro – reconhecesse o vínculo empregatício de todos os motociclistas cadastrados no aplicativo. Mesmo que a Justiça tenha suspendido a decisão de primeiro grau, que beneficiava cerca de 15 mil motoboys e condenava a empresa por danos morais coletivos no valor de R$ 30 milhões, o tema ainda é um tópico válido de discussão.
Para que o vínculo trabalhista seja reconhecido, é necessário que, na relação de emprego, haja alteridade, subordinação, pessoalidade, onerosidade e não eventualidade. De acordo com a advogada especialista em Direito do Trabalho Aline Andrade Alves, o processo da Loggi preenche todos esses requisitos. “A legislação vigente hoje é bem favorável para que seja reconhecido o vínculo sim. A subordinação existe porque não é o motociclista quem decide o valor cobrado pela entrega; a pessoalidade também está presente, tendo em vista que eles fazem um cadastro; já a onerosidade existe porque os motoboys recebem pelo trabalho; e a habitualidade é apresentada através de um contrato de termos de adesão em que diz que eles, habitualmente, seja duas ou três vezes por semana, prestam esse serviço”, explica.
Por outro lado, em setembro do ano passado, em condições muito parecidas, os ministros que integram a 2ª seção do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) decidiram que os motoristas de aplicativos eram trabalhadores autônomos e, portanto, caberia à Justiça comum julgar ações contra empresas de aplicativo, e não a trabalhista. Conforme a advogada especialista em Direito do Trabalho Alessandra Wasserman Macedo, a divergência de entendimento entre as duas decisões parecidas ocorre porque os processos foram julgados em justiças diferentes: o da Loggi, na trabalhista, e o da Uber, na comum. “Na Justiça do trabalho, serão observados somente os requisitos do vínculo de emprego. Se aqueles cinco requisitos forem preenchidos simultaneamente, a Justiça declara o vínculo trabalhista. Já na Justiça comum, será avaliada a relação como um todo e não tem requisitos específicos, então será feita uma avaliação mais superficial.”
A Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, desembargadora Carmen Izabel Centena Gonzalez, salienta que essa discussão não é incomum. “O que deve ser apreciado é a existência ou não dos requisitos indispensáveis ao reconhecimento da relação de emprego. Logo, se um trabalhador está subordinado às ordens de outrem, recebe salário, presta serviços com habitualidade e pessoalidade, estão preenchidos os requisitos hábeis ao reconhecimento do vínculo de emprego. Cada caso é um caso, e o juiz da causa deverá apreciar todos os contornos da relação, à luz da legislação, da Constituição, e dos princípios que informam o Direito do Trabalho. É possível ter um trabalhador vinculado a uma plataforma digital e que não preencha os requisitos legais e outro que o preencha”, justifica.
Outra razão para que ações parecidas tenham resultados tão diferentes no âmbito do Direito do Trabalho é a falta de uma legislação específica para atender às novas relações de trabalho que estão surgindo junto à popularização das tecnologias. A reforma trabalhista, aprovada em 2017, ajudou a legislação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) a dar um grande passo em direção a uma melhor compreensão das relações empregatícias, com leis que regulamentam o teletrabalho, por exemplo.
Parao advogado especialista em Direito do Trabalho e membro da Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo (Aatsp) Fernando Peluso, a legislação deve ser ampla e mais adequada. “O Direito do Trabalho precisa ser modernizado. E precisa abarcar situações diferentes de maneiras diferentes. O que se tem visto é que a sociedade tem evoluído, mas o olhar sobre o Direito do Trabalho é exatamente o mesmo de 1943. Na minha opinião, tentar encaixar essas novas formas de relações de trabalho dentro do que se tinha em 1943 (quando a CLT foi criada) é estar sujeito a criar injustiças. Estão tentando adaptar uma relação de trabalho completamente nova a uma legislação de 60 anos atrás, portanto a legislação não abarca de uma maneira correta o que se tem hoje. A reforma trabalhista discutiu o teletrabalho, mas os trabalhos via aplicativos não foram regulamentados, por isso estão tentando adequar às legislações antigas.”
Já o advogado especialista em Direito do Trabalho Rodrigo Shiromoto julga as decisões acerca de vínculo empregatício como retrógradas, devido à falta de dinamismo da CLT. “Estamos falando de uma legislação de 1943 que está tentando ser atualizada, mas essas decisões são discussões que não possuem embasamento legal. Vemos o Judiciário tentando se adaptar em alguns casos, como esse da Loggi, para o reconhecimento do vínculo. Mas ao ver um poder Judiciário tentando aplicar regras de 1943 a uma relação de hoje, presente em um universo 4.0 de uma revolução digital, me parece haver um desencontro muito grande entre o Direito e a realidade. Não aparenta existir bom senso nessas decisões, justamente porque falta ao aplicador da norma uma previsão normativa para o reconhecimento desses vínculos”, defende.
O que o reconhecimento do vínculo alteraria no modelo atual?
Caso a Justiça determine o reconhecimento do vínculo empregatício, a Loggi deverá registrar todos os motoboys que prestarem serviço para a empresa e quiserem ser registrados. Além de implicar no cumprimento das obrigações que todo empregador tem com o seu empregado, Alessandra acredita que pode impactar negativamente a vida dos motociclistas e da empresa. Já desembargadora Carmen defende que, para o trabalhador, é muito melhor e que, para a empresa, vai gerar custos que certamente serão repassados aos clientes.
Além disso, Alessandra salienta que, se for reconhecido, o processo de contratação vai ser igual ao de qualquer outra empresa. Sem a possibilidade de qualquer um realizar o cadastro pelo app e com a necessidade de um pré-contrato de análise, entrevista de emprego e outros aspectos, há chances de os números do desemprego voltarem a subir.
“Vai acabar onerando muito mais a empresa, porque eles vão ter que começar a recolher impostos, sem contar as horas extras. Será ruim, porque a empresa vai repassar esses custos para os motoboys e, inevitavelmente, o valor que eles recebem vai ser reduzido. Com certeza, há a possibilidade tem chance de reduzir o número de motoristas, porque na hora que tiver que registrar todos, o custo vai ficar muito alto.”
Para Peluso, a principal questão a ser analisada é se os motoboys realmente se interessam em ser registrados. Ele acredita que, se essa decisão for positiva para os motociclistas, pode nortear os julgamentos de outras empresas de apps. Por isso, Aline atenta para a possibilidade de empresas de origem internacional pararem de atender o Brasil caso seja necessário o registro de todos os funcionários.