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Falta de marco legal para licenciamento ambiental gera risco de guerra fiscal
O licenciamento ambiental foi pauta de julgamento recente pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, cujo acórdão foi publicado no último dia 17. A corte validou a Lei Complementar 140/2011 e fixou interpretações a serem dadas a alguns dispositivos da norma. Com isso, estabeleceu a competência supletiva dos entes federativos para a renovação de licenças e a fiscalização e aplicações de sanções.
O advogado e procurador de Justiça aposentado Édis Milaré, um dos mais renomados juristas do Direito Ambiental brasileiro, vê com bons olhos a decisão, mas ressalta que a atuação do STF não resolve o principal problema do país quanto ao licenciamento ambiental: a falta de um marco legal federal sobre o tema.
Tal lacuna legislativa, segundo Milaré, pode gerar diversos efeitos negativos. Entre eles, há o risco de uma guerra fiscal ambiental — ou seja, a possibilidade de entes federados competirem entre si para arrecadar recursos por meio de sanções em licenciamentos, ou até para atrair empreendimentos para seus respectivos territórios.
Além disso, enquanto não há um marco legal, os estados podem ter regras muito discrepantes para o licenciamento ambiental. Isso pode favorecer alguns deles, ou mesmo algumas empresas.
Como exemplo, Milaré conta que alguns estados concedem apenas autorização aos empreendimentos, e não licenciamento. “A autorização é um ato precário que, via de regra, não sujeita ninguém a indenização, enquanto o licenciamento é um ato definitivo que dá garantias”, explica ele. Assim, há casos de empresas que migraram para outros estados nos quais o aval estatal era o licenciamento. “É um exemplo tímido, mas real, da guerra fiscal instalada.”
Na visão do jurista, “enquanto os estados puderem estabelecer privilégios para aqueles que interferem nas questões ambientais de forma não orientada de cima para baixo, a guerra fiscal sempre pode existir”.
Centenas de municípios brasileiros já contam com seus próprios Códigos Ambientais. O mesmo ocorre com diversos estados. Já a União não possui um regramento nacional — exatamente o que poderia evitar a guerra fiscal no licenciamento. “A guerra fiscal existe enquanto o código de Minas Gerais for diferente dos códigos de São Paulo, da Bahia e do Rio Grande do Sul”, diz Milaré.
Para ele, a questão só será resolvida quando um código nacional estabelecer exigências de piso para todos os demais entes. A partir disso, quem quiser estabelecer mais restrições — nunca flexibilizações — “que o faça por conta das suas especificidades”.
“Eu já estou há 27 anos em advocacia ambiental. Quase metade das ações do nosso escritório que vão à Justiça discute licenciamento ambiental, pois não se sabe ainda hoje como fazer. Depois de décadas, ainda não se sabe bem em que porta bater, por falta de um código que estabeleça um piso mínimo de garantias”, afirma Milaré.
Ele acredita que o Brasil possui diplomas legais eficientes, mas tem um excesso de leis, em todas as esferas, que precisa ser administrado: “Não dá para um estado dizer uma coisa e outro dizer outra”.
Ou seja, a guerra fiscal “pode efetivamente ser cerceada diante de um regramento mais adequado”. Para o advogado, não se trata apenas de licenciamento, mas da gestão ambiental como um todo.
Relação com o acórdão
Por outro lado, uma corrente de pensamento acredita que a recente decisão do STF impulsiona a guerra fiscal, devido à abertura de uma “brecha” a partir da falta de especificações nos pontos em que a corte deu interpretações conforme a Constituição.
A LC 140/2011 estipula um prazo de 120 dias para a análise de renovações de licenças ambientais. O Supremo decidiu que, quando esse prazo é ultrapassado sem manifestação do órgão licenciador, instaura-se a competência supletiva dos demais entes federativos.
Ou seja, em casos de omissão ou mora imotivada e desproporcional do estado, por exemplo, a União pode assumir o procedimento. Caso a demora seja do município, a questão da renovação passa a ser do estado.
Além disso, o STF também se manifestou sobre a atribuição comum dos entes federados para fiscalizar empreendimentos e atividades potencialmente poluidores ou que utilizem recursos naturais. Os ministros decidiram que a atuação supletiva pode ocorrer em casos de omissão ou fiscalização insuficiente do órgão licenciador.
Porém, o acórdão não especificou o que é mora imotivada e desproporcional quanto ao primeiro ponto, nem mesmo o que é omissão ou fiscalização insuficiente com relação ao segundo.
Para o advogado e professor universitário Talden Farias, que atua nas áreas de Direito Ambiental e Urbanístico, essa indefinição é o que pode gerar a guerra fiscal. Em outras palavras, os entes federativos se aproveitariam disso para intervir em licenciamentos de outros entes, no intuito de aplicar multas e arrecadar.
“O órgão ambiental não licenciador já podia atuar aplicando sanções administrativas em situações emergenciais ou cautelares. Com a decisão do Supremo, ele passou a atuar também em situações de omissão — conceito que, em matéria ambiental, ainda não é tão claro”, discorre ele.
Para Farias, isso pode ser resolvido pela própria corte, por meio de decisão em julgamento de embargos de declaração — no qual seriam especificados os critérios para configuração de omissão. Outro caminho possível para suprir essa lacuna, segundo ele, seria a edição de um decreto regulamentador da LC 140/2011.
Rodrigo Borges de Barros, consultor ambiental do escritório Peluso, Stupp e Guaritá Advogados e presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB-MG, também defende que tais critérios “precisam constar expressamente em dispositivo normativo, asseverando a previsibilidade e segurança jurídica”.
Discussão legislativa
Atualmente, tramita no Senado um projeto de lei que cria um marco legal para o licenciamento ambiental. No mês de março, foram designados os respectivos relatores da proposta nas Comissões de Meio Ambiente e de Agricultura e Reforma Agrária.
Na opinião de Talden, mesmo a aprovação do PL não interferiria no risco de guerra fiscal. Isso porque, conforme a Constituição, a competência entre os entes federativos só pode ser fixada por meio de leis complementares. Já a proposta em trâmite no Congresso é um projeto de lei ordinária. “Esse marco vai tratar das questões procedimentais, não da competência”, aponta ele.
Milaré concorda que a tramitação precisa de um ajuste: ele defende que o Congresso adote o rito de uma lei complementar para discutir o projeto. Assim, seria possível alterar a LC 140/2011, estabelecer melhor as regras de competência e evitar uma guerra fiscal.
Já Rafael Feldmann, sócio da Cascione Advogados e advogado especializado em Direito Ambiental, acredita que o PL, na sua forma atual de lei ordinária, é irrelevante. “Esse suposto marco teria pouco a contribuir na minha opinião”, aponta. Para ele, a LC 140/2011 é “um ato normativo bem pacificado e que, em muitos temas, já cumpre a função de um marco legal”.
Visões antibélicas
A ideia de que o acórdão do STF terá algum papel na propagação do risco de guerra fiscal é rejeitada por boa parte dos ambientalistas. Como já explicado, Milaré, por exemplo, entende que a possibilidade já existe por causa da falta de um marco legal.
“Hoje não há um marco regulatório para o licenciamento. Pode haver superposição. Pode e já há. Não é o acórdão que vai gerar essa situação”, diz Glaucia Savin, advogada especialista em gestão ambiental que já atuou na Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo, na Comissão de Meio Ambiente da OAB-SP e na Câmara Técnica de Assuntos Jurídicos do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
Ela reconhece que, hoje em dia, principalmente em casos com maior visibilidade, é comum que todos os órgãos apliquem alguma sanção, o que gera judicialização. A falta de definição do STF sobre o que é insuficiência de fiscalização também contribui para isso.
Porém, a advogada considera que esse é um processo natural. Na sua visão, é necessária, de fato, a análise caso a caso para verificar eventual insuficiência. Por isso, ela não acredita em uma resolução por meio de embargos e acha impossível que um decreto ou alguma outra norma regulamente a questão objetivamente.
Feldmann, por sua vez, também entende que seria muito complicado para os julgadores estabelecer objetivamente o que é omissão ou insuficiência de fiscalização. “Nesse aspecto, caberá a razoabilidade de quem estiver interpretando o tempo, sempre caso a caso”, opina ele.
De qualquer forma, Glaucia não acredita em uma guerra fiscal a partir da decisão do Supremo. “O acórdão não muda nada. O acórdão manteve os procedimentos que já vinham sendo adotados com base na LC 140/2011 e na Resolução 237/1997 do Conama”, explica ela.
Segundo a advogada, há, na verdade, uma “deficiência da fiscalização ambiental no país”. Na maioria dos casos, os conflitos, na prática, acontecem porque nenhum dos órgãos cumpriu a função fiscalizatória.
Ou seja, para ela, a guerra fiscal “ocorreria se tivéssemos órgãos superaparelhados, todos em condições ótimas para operar com efetividade. Na verdade, o que temos no Brasil é o contrário, principalmente em nível federal, onde ocorreu um verdadeiro desmonte”.
Rodrigo Barros também ressalta o grave problema da falta de fiscalização ambiental no país. “A decisão do STF não deve ser vista como uma chance para intervenção desenfreada em licenciamentos ambientais, mas, sim, como uma medida que pode ser aplicada em circunstâncias específicas e justificadas para garantir, essencialmente, a proteção do meio ambiente.”
Por fim, Feldmann também não vê como o acórdão poderia causar uma guerra fiscal: “Em minha leitura, os órgãos estaduais e também o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) já estão bem ocupados e preocupados em fazer o seu próprio trabalho. Poderia até ocorrer uma maior arrecadação nas taxas de licenciamento ou mesmo em multas, mas isso não consiste em uma verba significativa”.
José Higídio é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 1 de abril de 2023
https://www.conjur.com.br/2023-abr-01/marco-licenciamento-ambiental-pais-guerra-fiscal